domingo, 25 de novembro de 2007

Por que o mito da "democracia racial" é ocultamento da realidade social brasileira?

Antonio Leandro da Silva*

Procurarei demonstrar o quanto a ideologia da classe dominante brasileira ocultou o processo real pelo qual o mito da “democracia racial” foi construído ao longo dos 500 anos da história do Brasil, resultando, assim, em representações sociais preconceituosas, racistas e discriminatórias do negro brasileiro.

Desde o nascimento, localizamo-nos numa determinada realidade na qual somos socializados a partir um conjunto de regras, normas, ritos, interditos, tabus, símbolos, instituições etc. Dentro desse tecido social, construímos nossa biografia. Crescemos pensando que tudo isso são coisas naturais e normais; tudo nos faz acreditar que existe uma ordem, de natureza normal e divina, passiva de mudanças e transformações, isto é, como se fosse uma coisa dada, e que no processo “histórico-social” não pudéssemos discutir, questionar e criticar, porque estaríamos ferindo princípios dogmatizados e, portanto, intocáveis e indiscutíveis.

Tudo isso, na verdade, não passa de uma realidade aparente em que se oculta a verdadeira razão de ser das coisas. Nesse sentido, o sociólogo Alípio de Sousa Filho (1995:65) afirma que, “como nos mitos, o que a sociedade oferece por meio da ideologia é uma representação da vida social que elimine a possibilidade do questionamento da realidade, evitando o perigo da desagregação e da destruição de sua ordem”. Assim, somos compelidos a interiorizar, sem alternativas, as representações sociais e os conceitos que a instituição nos impõe.

Nesse contexto, instituição significa “padrão de controle”, ou seja, “uma programação da conduta individual imposta pela sociedade” (BERGER, 1977:193). E, evidentemente, esse “padrão de controle” é ocultado pela ideologia no sentido de que esta “deturpa a realidade, operando o ocultamento da historicidade real” (ALÍPIO, 1995:66). Este autor ainda diz que “a ideologia é um fenômeno social cuja característica principal é ser o modo como a realidade aparece aos homens e que impede a esses o conhecimento do processo de instituição da realidade” (ibidem: p. 67).

Nesse sentido, podemos afirmar que a sociedade brasileira oculta o processo real pelo qual o mito da "democracia racial", tanto defendida por alguns dos nossos clássicos, como Azevedo Amaral, Gilberto Freyre, Nina Rodrigues, Oliveira Vianna e tantos outros, foi construído e difundido ao longo de décadas. Segundo esse mito, na sociedade brasileira haveria, apesar de sua diversidade e pluralidade cultural, três etnias vivendo harmoniosamente, sem preconceito e sem racismo, sociedade esta onde todos viveriam na harmonia étnica.

Nessa construção da representação social do povo brasileiro, ocultou aquilo que Alípio chama de “historicidade da realidade”. Porque, e isso é um fato real, o que se observa na sociedade é uma forma de racismo precisamente sutil, muito mais maléfico do que o dos Estados Unidos ou mesmo do da África do Sul. O “racismo à brasileira” se manifesta cotidianamente nas relações sociais; é um racismo tênue em suas manifestações porque nega ao negro uma igualdade econômica e de oportunidades na sociedade brasileira.

Nesse contexto, o mito da democracia racial se torna muito mais um “mecanismo de barragem a ascensão da população negra aos postos de liderança ou prestígio quer social, cultural e econômica” (MOURA, 1988:30), do que de interação social e construção de sua cidadania.

Assim, podemos confirmar as palavras de Alípio, quando diz que “na vida social vão se produzindo idéias (representações) que se constituem elas próprias nas explicações que formam a dominação invisível como uma extensão da invisibilidade por trás da qual toda a realidade se esconde para os indivíduos” (ALÍPIO, 1995: 69).

Hoje, compreendemos melhor as razões por que a ideologia dominante do colonizador deixou lacunas e fissuras nas representações produzidas no contexto escravista, onde as relações de produção legitimavam o status de uma elite que se dizia “superior”, ocultando a historicidade da realidade. E, infelizmente, interiorizamos, no interior das instituições, essas representações e idéias da realidade social do colonizador europeu, tais como: seus imaginários, seus mitos, seus conceitos religiosos e filosóficos, suas normas e instituições. Assimilamos, inconscientemente, as suas relações sociais; acreditamos piamente em suas histórias, contos, mitos, crenças; e, por fim, ainda os temos como senhores, mestres e benfeitores. Muitas escolas particulares ainda, em tempos atuais, reproduzem tal ideologia através de seus manuais. E uma boa parte de professores (as) também ainda não se desvencilharam desta ideologia, reforçando assim o sistema dominante.

Subjacente a esse sistema de controle social que interiorizamos, há, oculto e aparentemente, toda a ideologia que serve para dominar as relações sociais. Essa ideologia oculta “a gênese histórico-social da realidade, fazendo com que a ordem das sociedades humanas apareça como natural, necessária, inevitável e independente da ação humana” (ALÍPIO, 1995:39).

Esse processo de dominação pode ser explicado, seguindo o pensamento sentido que Alípio de Sousa emprega para esclarecer as razões dos medos, mitos e castigos, não apenas através daquele viés do poder político (referente ao Estado) ou da dominação de uma classe sobre outra, senão de uma dominação que tem uma precedência histórica e cronológica ao Estado e às classes. Ou seja, “as sociedades humanas, antes de organizarem a dominação calcada na divisão de classes, organizam formas de dominação aos seus membros que não passam pelo poder das classes e do poder” (ibidem: 42).

Como vimos, o sentido da palavra dominação é muito mais amplo, pois é anterior à formação de uma superestrutura política; ela é, na verdade, “um conjunto mais amplo de representações sociais que apresentam a realidade inteira como algo dado, natural, invisível – de que o Estado e as classes são apenas uma parte” (ibidem: 42).

A partir dessa visão, podemos analisar o mito da democracia racial brasileira como uma representação social que dominou por várias décadas - e ainda continua dominando - o nosso imaginário e que pensávamos fosse verdadeiro, dado as explicações, de cunho biológico, das relações sociais das três etnias, explicações estas forjadas no meio da classe intelectual brasileira.

A grande tarefa dos intelectuais e escritores negros, bem como do Movimento Negro é, justamente, primeiro, produzir uma crítica às representações sociais que - sendo conseqüência da relação coletiva entre os homens de um contexto histórico -, obscurecem a “gênese histórico-social” da realidade social do negro brasileiro; e, segundo, é construir um pensamento que venha reformular as categorias ideológicas que ainda hoje dominam nosso imaginário. Assim, estaremos superando uma historiografia conservadora e de cunho elitista.

Por fim, a nossa missão é desmitificar representações sociais depreciativas e estereotipadas do negro, produzidas e ainda reproduzidas segundo a ideologia dominante do homem branco europeu e difundidas por alguns dos nossos intelectuais que, não obstante suas boas contribuições para o pensamento sócio-antropológico brasileiro, reforçaram a “inferiorização social e racial do negro, segmentos mestiços e índios e a exaltação cultural e racial dos dominadores brancos” (MOURA, 1988: 24).


*Antonio Leandro da Silva (Religioso Franciscano e doutorando em Ciências Sociais pela PUC/SP).

domingo, 11 de novembro de 2007

RESISTÊNCIA DO POVO NEGRO: LEGADO DO LÍDER ZUMBI DOS PALMARES

Frei Antonio Leandro da Silva*

Neste dia 20 de Novembro, através de diversas formas de manifestações políticas e sócio-culturais, comemoramos o Dia da Consciência Negra, tendo como referencial o líder negro ZUMBI dos Palmares (Alagoas, 1655 - 20/11/1695). O grito deste incansável lutador por liberdade e eqüidade social continua a ecoar no imaginário de milhões de negros (as) brasileiros (as) de hoje. Zumbi é paradigmático para o Movimento Negro Brasileiro, porque nele encontra-se um dos princípios do ideário abolicionista: a luta pela liberdade e cidadania plena dos afro-brasileiros. Nesse sentido, a democracia substantiva somente tornar-se-á uma realidade quando essa população (51%) tiver pleno acesso às condições de igualdade de oportunidades na vida econômica, social, política, cultural e religiosa do país. Por isso, a luta incansável pela cidadania plena do negro brasileiro tem sido - ao longo dos últimos anos - a bandeira número um desse Movimento.

O primeiro e maior movimento negro revolucionário brasileiro foi liderado, depois de Ganga Zumba, por Zumbi, cujo objetivo era: a emancipação dos escravos. O espaço emblemático dessa luta é o Quilombo dos Palmares. Situado na Serra da Barriga, Alagoas, o Quilombo chegou a se constituir de uma população de mais de 30 mil habitantes. Geograficamente, Serra da Barriga – valioso sítio histórico do Brasil - significava lugar estratégico político-militar de defesa dos escravos contra o sistema escravocrata. Simbolicamente, é o locus da unidade basilar de resistência do escravo, de liberdade e de igualdade entre os diferentes-iguais. Para os escravos, este lugar passou a ser considerado a “Terra da Promissão”. Por isso, hoje, ele é paradigmático porque é considerado, pelo movimento negro nacional, o primeiro espaço social em que, na história brasileira, se ensaiava uma sociedade democraticamente livre e igualitária.

Por outro lado, “Quilombo” é também o lugar da organização, militarização e desestabilização das forças produtivas escravistas. Assim, nos séculos XVII-XVIII, encontravam-se vários quilombos espalhados por diversas regiões do país, tais como: Minas Gerais, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Goiás, Pará, Maranhão, Pernambuco, Sergipe, Rio Grande do Sul, São Paulo e Alagoas. De forma que os quilombos tiveram um papel político e estratégico fundamental na história da escravatura, pois se tornaram, como disse o sociólogo Clóvis Moura, potencial e dinamismo capazes de desgastar o escravismo e criar elementos de crise permanente em sua estrutura sócio-econômica. Ou seja, eles foram potencialmente vetores desestabilizadores da estrutura escravocrata brasileira.

Mas o maior Quilombo foi o de Zumbi dos Palmares. Sua origem data desde 1600, quando negros (as) deixavam os engenhos de açúcar de Pernambuco e se refugiavam na Serra da Barriga. Neste Quilombo, em um dos seus mocambos, nascia Zumbi (1655), que, ainda criança, fora aprisionado por soldados e dado ao padre António Melo, que o batizou com o nome de Francisco. Como adolescente - inteligente e altivo - Francisco acolitou nas missas e estudou português e latim. Porém, em 1670, ele foge, regressando a Palmares, onde (1675) na luta contra os soldados portugueses, comandados pelo Sargento-mor Manuel Lopes, revelava-se grande guerreiro e organizador militar. Daí ganha o nome de Zumbi, cujo termo, neste texto, de maneira livre, é traduzido por “guerreiro”.

Em 1678, Pedro de Almeida, Governador da capitania de Pernambuco, propôs ao então chefe do Quilombo dos Palmares, Ganga Zumba, a paz e a alforria apenas para os negros que haviam nascido neste lugar. Ganga Zumba aceita, mas Zumbi foi contrário ao acordo, porque não admitia que somente alguns negros fossem libertados, enquanto outros permanecessem escravizados. Por conta disso, Zumbi lidera a derrubada de Ganga Zumba do poder (1680), passando a governar Palmares e, militarmente, a comandar a resistência contra as tropas colonialista.

O Governador de Pernambuco, após vinte e quatro tentativas inglórias para destruir Palmares, entregou o comando para os bandeirantes Domingos Jorge Velho e Vieira de Mello que, em 1694, formando um grande exército e aparelhados com a artilharia oficial, comandam o ataque final contra a Cerca do Macaco, capital de Palmares, destruindo todos os mocambos. Zumbi, embora ferido, consegue fugir. Mas em 20 de novembro de 1695, depois de ser denunciado por um antigo companheiro, o guerreiro Zumbi é localizado, preso e degolado. Sua cabeça foi exposta em praça pública para servir de exemplo de punição àqueles que, eventualmente, se rebelassem contra o sistema escravista.

Como vemos, enquanto líder guerreiro, Zumbi construiu uma estratégia militar, para combater o poder dominante, que era formado por uma elite branca, europeizada e hierarquicamente conservadora. A este sistema, o Quilombo resistiu quase cem anos. Zumbi preferiu oferecer a sua cabeça, como símbolo de resistência, a deixar-se corromper pela ideologia do dominador.

Portanto, o Dia 20 de Novembro tornou-se um dia significativo tanto para o movimento negro quanto para os quilombos espalhados pelo país afora, porque os afro-brasileiros (as) são convocados (as) a participar das diversas formas de manifestações políticas e sócio-culturais, comemorando as vitórias e conquistas após os 312 anos da morte de Zumbi. Ademais, neste guerreiro, o movimento encontra as aspirações e os ideais abolicionistas para combater a discriminação racial e promover a igualdade de oportunidade entre brancos e negros. Por isso, a luta pela aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, o PL Cotas 73/99, a PEC 02/2006 e o 20 de Novembro, como “Dia Nacional da Consciência Negra”, simboliza a consolidação de uma série de conquistas que já foram alcançadas ao longo dos últimos trinta anos.

A cidade de São Paulo, por exemplo, tem mostrado o seu compromisso com os afro-brasileiros quando - em 1983/4 - por meio de um decreto do governador Franco Montoro, foi criado o Conselho de Participação da Comunidade Negra, cuja função era definir normas para elaborar políticas públicas para combater a discriminação racial. Depois, a Lei Orgânica Municipal de São Paulo, no que se refere ao combate ao racismo em livros didáticos, diz que é dever do Município: garantir educação igualitária, desenvolvendo o espírito crítico em relação a estereótipos sexuais, raciais e sociais das aulas, cursos, livros didáticos, manuais escolares e literatura (Capítulo I. Art. II, 2003). Finalmente, uma outra conquista do movimento negro desta cidade foi a Lei N° 13.707, de 7 de janeiro de 2004, que sanciona o dia 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra, como dia feriado municipal.


São Paulo, 11 de novembro de 2007.

* Frei Antonio Leandro da Silva (Religioso franciscano e doutorando em Ciências Sociais pela PUC/SP).

segunda-feira, 23 de abril de 2007

"Poder pelo poder": ambição de todo político

O Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, no jantar com o PMDB, na casa do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), fez o seguinte auto-elogio: “Se um dia vocês chegarem à Presidência da República, vão perceber que esse é o ápice de um ser humano. Não tem nada, além disso,” (Jornal Folha de São Paulo, A6 Sexta-feira, 13 de abril de 2007).

No discurso do Presidente sobressai, na verdade, um sentido de “política” que encontramos na Sociologia Compreensiva de Max Weber (1864-1920). Não sei se foi na esteira desse sociólogo alemão que Lula fez tal pronunciamento. Pois do contrário, ele estaria rompendo e se distanciando do pensamento marxista no qual fora educado e preparado politicamente. Mas o certo é que Max Weber em seu ensaio sobre a “Ciência como vocação” (H.H. Gerth e C. Wrigth Mill, 2002) traz o seguinte significado sobre “política”: “participação no poder ou a luta para influir na distribuição de poder, seja entre Estados ou entre grupos dentro de um Estado”. Assim, todo candidato, na disputa por uma cadeira seja no Senado seja na Assembléia Legislativa, estaria, sem dúvida, lutando tanto pela participação quanto pelo desejo de influenciar na distribuição do poder. Mais ainda, na esteira de Weber: “Quem participa ativamente da política luta pelo poder, quer como um meio de servir a outros objetivos, ideais ou egoístas, quer como o “poder pelo poder”, ou seja, a fim de desfrutar a sensação de prestígio atribuída pelo poder”.

O Presidente Lula - tendo saído de uma campanha de “peito lavado”, a macroeconomia do país estabilizada e o índice de popularidade favorável – tem razão de dizer que a Presidência é “o ápice de um ser humano”. Sobretudo ele que veio debaixo: homem médio, simples mecânico, baixo nível escolar. Sem desconsiderar sua vocação para a política e seu carisma de autêntico líder, no sentido de Max Weber. Até porque segundo este autor, os ‘ministros’ e ‘presidentes do Estado’ modernos são os únicos ‘funcionários’ dos quais não se exige ‘qualificação profissional’ alguma, porque são lideranças que exercem o poder circunstancialmente. Ou seja, eles são ‘funcionários’ somente no sentido formal da palavra, e não material, como é o caso dos funcionários profissionalmente qualificados que trabalham na ‘máquina’ administrativa do Estado.

Assim, o Presidente demonstra que está desfrutando a sensação de prestígio, porque alcançou o “poder pelo poder”: a Presidência. O prazer de ter sido reeleito para comandar o território brasileiro - tendo ao seu lado uma força, o Estado, este entendido como a “única fonte do ‘direito’ de usar a violência” – dá-lhe a legitimidade de influir na distribuição do poder. Portanto, o Presidente Lula está dentro das regras de quem usufrui do poder.

Sem demagogia, a distribuição do poder nada mais é do que a distribuição de cargos às funções governamentais, sobretudo aos mais fiéis. Daí a presença de Lula no jantar com os caciques do PMDB e nos futuros encontros com os outros partidos da base é, e ele sabe disso, uma forma de reinar legítimo e democraticamente – sensação de prestígio – e fatiar os cargos entre os pares leais. Outra vez, trago o pensamento de Max Weber para apoiar tal argumento, quando este diz: “Em troca de serviços leais, hoje, os líderes partidários distribuem cargos de todos os tipos (...)”. E continua: “Todas as lutas partidárias são lutas para o controle de cargos, bem como lutas para metas objetivas”.

Portanto, as metas objetivas já foram dadas: distribuição de cargos tanto no primeiro quanto no segundo escalão, em vista do apoio, da lealdade e de base legítima para governar, mas, sobretudo, em vista das eleições presidenciais de 2010. Assim, podemos afirmar que na política nada é por acaso e sem pretensões de “poder pelo poder”, ou seja, de prestígio que este confere ao político.


São Paulo, 13 de abril de 2007.

Antonio Leandro da Silva (Doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP)